segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Oscarito Soares

Oscarito Soares, também conhecido como Oscar é fruto dos desfruto. É fumo de rolo, é pedra no sapato dos hipócritas, é Kumu, é vendedor da humanização na prática de saúde pelo país a fora, pois se fosse na época ditadura ele já estaria mesmo era fora.

É artista sombrio, enigmático, pragmático, profano mesmo melhor dizendo. É renascentista, ou melhor, não é não, não se vê como o centro do mundo. É naturalista, sim naturalista, daqueles que se pudesse andava nu cossando o saco mucho. È comediante, é folk é um tomador de cerveja e não liga para os rótulos. Seu lugar na história seria o sul da mesopotâmia, mais precisamente na babilônia criando e confundindo. Seu lugar hoje é seguir a massa de ar quente, quente por melhoras, por atenção, por um copo de água sem parasitas.

Oscar foi, ou melhor, é, pois está longe de morrer ( já tirou o apêndice!) inspiração para os trangressores, para os corretos, para os éticos, para os bêbados e para as almas penadas de nossa comunidade. É o ator protagonista de uma série de belas crônicas de seu novo paradeiro o Acre. Terra do esquecimento, dos pontos de ônibus descobertos e dos fãns de Euclides da Cunha. As belas crônicas, que na verdade estão bem agudas ainda, foram enviadas recentemente para minha esposa e acabei de ler, não me contive, não pedi autorização e também não pagarei direitos autorais, pois ainda não recebi a minha insalubridade....Vou colocá-las aqui para que não se percam neste mundo cheio de backspace.

Grande Oscarito, grande amigo, grande Pai, grande médico, grande artista da periferia....

Á, já ia me esquecendo. Ele tem cheiro de fumaça!


Gilberto Granato.


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PINÁCULO

Nossa vida no Acre.
O inverno está chegando. O bolor já se anuncia.
Ontem escutei alguma personalidade dizer que o Acre é o centro da América latina. Sabe que é verdade, está bem no meio mesmo. No fundo, no fundo, sempre pensei que isto fosse lá pelas bandas de Cuiabá. Mas pega bem admitir que o centro é aqui. E, reparando melhor, o centro, bem centro mesmo, está aqui no meio da nossa casa. Esta casa não se inclina de jeito nenhum. Se o Rio de janeiro for para baixo e Lima subir oito metros, como uma gangorra, aqui em casa não acontece nada, no máximo o copo desliza alguns centímetros sobre a mesa. Se uma massa migratória subir para o México tentando um coyote que os conduza por Tijuana, lá pela Argentina vai faltar neguinho e o nosso vasilhame quase não se moverá. Se muito escorrega um pouquinho para o outro lado da mesa.
Eu oriento as crianças a não ficarem muito tempo num canto da casa ou evito que brinquem juntos por tempo demasiado uma vez que há risco de afundar Bogotá e elevar Montevideo, podendo inclusive represar a foz do Rio da Prata. Se tua casa aí longe se inclinar muito podes crer que eu e minha mulher estamos namorando por aqui ou colocamos as compras no lugar errado. Mas a ordem e disciplina das coisas por estas bandas foram abaladas. Minha mulher entrou numas de colocar uma cortina horrorosa separando a sala com a cozinha. Alega que assim o ar condicionado não escapa e o conforto da sala de jantar melhora. Horrorosa esta maldita cortina, parece meretrício. Pois bem, lembrando da física, sabemos que o ar frio é mais pesado que o ar quente, então o centro da américa latina se desloca. Assim, para compensar, eu tenho que me contentar ficando refugiado na despensa, lá nos fundos, sentado num banquinho de pau. Eu e meu vira-latas, o Filé. Dois vira-latas anônimos lutando pelo equilíbrio desta terra.
Aposto que você nem sabia disto.
Se vieres ao Acre deixe alguém no seu lugar.
(êta, balancinho bom!)





QUASE

Nossa vida no Acre.
Quando chegamos na cidade um circo estava por lá, ou, melhor, por aqui.
Um circo poído, velho, meio godê, assim, assim, meio caidaço. Pois bem, reparei que o seu staff também não tinha lá o seu glamour. Um trapezista meio raquítico, a atendente do mágico com suas meias de liga com uns furinhos evidentes, o mágico meio bêbado, o dono bem gordão, a mulher do dono com a maquiagem borrada, o palhaço meio com cara de trapezista, o bilheteiro meio com cara do dono, a atendente do mágico meio com cara de mulher do dono, o dono meio com cara de mágico, o vendedor de balas meio com cara de palhaço, o palhaço meio com jeito de tratador de animais, os animais meio com cara de bilheteiro, o tratador de animais também é a cara do dono. Enfim, eles nunca estavam juntos no mesmo alcance visual do espectador. Pera aí, espera aí. A mulher do mágico é a mesma mulher do dono. E o dono também é a cara da mulher do mágico.
(...)
Passada a temporada o circo foi-se embora com suas matuletagens sobre o capô da Kombi ano 76 e apenas um motorista meio familiar, levando isto tudo. Nunca mais vi o dono.
O norte é assim, tem que ter coragem e muita vontade para lapidar o diamante da vida.
Tudo isto é o espetáculo.
Traga seu circo também.
Te espero.
(você seria uma excelente mulher do mágico)


INFÂNCIA


Nossa vida no Acre.Vivo em uma região de florestas e rios. Meus filhos começaram bem a se adaptar no novo mundo longe da vida antes de apartamentos e shopping center. Já a minha mulher tem dificuldades para se adequar a um lugar com profundas limitações de trabalho, facilidades e conforto.Realmente não é fácil viver num local estranho.
Outro dia ingressou na nossa família um pequeno cachorrinho vira-latas de pouco mais de um mês de vida. Como a nossa casa fica em um sítio que tem outros cães, pareceu elementar que ele seria triturado pela alcatéia feito filé mignon. Seu nome então é Filé. Mija e caga pela casa inteira. Tritura sapatos e chora a noite toda.
A casa é uma bagunça, bonecos, bonecas, carrinhos, canetinhas, xixi e coco de cachorrinho.
É uma casa de infâncias.
Infância dos homens.
Infância canina.
Infância minha.
Adoro isto.






DEUS

Nossa vida no Acre.
Hoje é domingo, acordei cedo para ver meus pacientes no hospital .
Retornei para casa e vi meus dois filhos deitados em meu lugar na cama junto à minha esposa. Uma pintura renascentista. Não há o que descreva. Os olhos fechados, cabelos revoltos. Nunca achei que o universo se resumisse tanto em algo tão simples.
Apenas velar o sono dos meus.
Um segundo no céu.
Vitória da vida.



TAXONOMIA

Nossa vida no Acre.
Moramos em um sítio. É esperado que, à noite, muitos bichos se anunciem porque o lusco fusco das luzes da casa atrai qualquer ser vivo que por isto se encanta. As criaturas da noite. Procuram luz aonde secar o peso de tanto sereno. Mas chega de roubar a letra de uma música perdida que pouca gente sabe o que é.
Pois bem, certa noite uma cigarra amazônica, repito, a-ma-zô-ni-ca, imensa, desculpe a redundância, começou sua ladainha na lâmpada fluorescente da sala de jantar, e a sua ladainha, meu amigo, é uma senhora ladainha. Minha filha olhou aquele bicho que tinha um imenso cabeção e olhos esbugalhados e já definiu seu nome: é um inseto-sapo, papai!
Meu filho, por sua vez,diante daquela buzina que o animal fazia definiu ainda melhor: é o inseto-incomodativo!
Outro dia a minha prole foi bisbilhotar uma galinha que orgulhosamente chocava os seus ovos sobre o ninho. O bicho não gostou da intromissão e deu-lhe uma bicada no rosto do menino. Assim surgiu a galinha-raivosa. Depois veio o cachorro preto-perigoso, a lagartixa-tigre, a formiga de bunda-amarela, o besouro-transparente, a aranha peluda-imensa, o cachorro marrom-medroso, a galinha-do-bico-preto, o lagarto-espinhoso, o bicho-cabeludo-elétrico e outros tantos mais.
Rezamos para que um simpósio de biologia ainda vá anunciar toda esta nova taxonomia, mais simples, mais pura, mais precisa e ,quem sabe assim, possamos esquecer toda aquela parafernália-astronômica de nomes em latim.
(que, por sinal, nem sei direito meu nome na escala animal).




HENRY


Nossa vida no Acre. Fui o primeiro a chegar e fazer o ninho.
Procurei habitar perto do hospital, já que num hospital eu tiro meu ganha-pão, mas o hospital é longe de tudo, principalmente das pessoas pobres, e é um hospital para pessoas pobres.A culpa não é minha. Cheguei e já era assim. Porém as pessoas pobres circulam onde circula o dinheiro que eles nunca terão, porém circulam...no centro, bem longe do hospital, acompanhe a equação, please. Estou longe do centro, habito e trabalho longe do centro e para chegar no centro, onde várias coisas me são essenciais, inclusive os pobres, que são essenciais para o Brasil, que se alimenta deles, e não dá muita coisa para eles, desculpe a filosofia, mas para chegar no centro existem inúmeras lombadas do padrão tibetano e mais de seis kilometros a percorrer. Em síntese, me fodi. À pé, estou fodido.
Comprei uma bicicleta. Depois de uma semana, quase enfartei. Bicicleta tri-boa, mas as lombadas, convenhamos, lembra que eu falei padrão tibetano. Tenta e me diz. Não dá, né?
Com um amigo, compramos um chevete ano 1981. Mais velho que o meu colega de trabalho. Não to mentindo, não. O colega existe e tem 24 anos e é , de fato, mais novo que o chevete. Mas o carrinho é bom. Velho, ranzinza e bom, confiável. Bem, quase. As primeiras lombadas do padrão tibetano ele não subiu e no centro eu fiquei, confinado com a lata-velha. Percebeu a equação, eu tinha ido mas não conseguia voltar. Tudo bem.
Limpamos o carburador e ele voltou a ser feroz. É um bólido marrom claro. As meninas da cidade chamam de buriti-do-amor, só para fazer troça. Ele é velho e carrega um cirurgião já desgastado, sem tambor de freio e que começa a engordar. Eu e o chevete fomos feitos um para o outro.
Meu filho diz que o automóvel é horrível, acabado, terrível porém muito valente.É um carro valente . Me sinto valente também, por conduzir o sentido anacrônico em pleno mundo pós-moderno.
Compre um também.
Recomendo.
(sobre o título, infelizmente o chevete não é da Ford)




GEOGRAFIA

Nossa vida no Acre.
Todos os estados do Brasil se fizeram numa relação de dependência de suas cidades frente às capitais, e o motivo é simples. Os rios correm para as capitais e se um rio não chega lá, pelo menos uma grande rodovia ou ferrovia ou outra via qualquer chega lá, sim, como um dreno que suga as pessoas para onde o progresso antes desponta. No Acre não é assim. Sabemos que as cidades da amazônia brasileira têm estreita dependência dos rios, uma vez que estes são, e continuarão sendo, por muito tempo, a grande via de transporte. Pois bem, no Acre os rios correm para a capital do estado ao lado, o Amazonas. É, pois, um estado com seu escoamento perpendicular ao eixo das suas intenções. É um estado que não era para ser . Era para ser Bolívia, mas ficou brasileiro. Chegou tarde na ordem do país e seu desenho é um anexo, um remendo no mapa, sem muito planejamento, um terreno sem frente nem fundos, apenas com entrada e saída por um lado.
O Peru é ao lado com uma grande cidade há apenas duzentos kilometros daqui, porém nenhuma estrada vai até lá, de forma que o acesso ao oceano pacífico seria muito facilitado e imagina você o quanto ambos os países ganhariam com isto. Mas não há estrada, nem rota de via aérea legal, e tudo indica que assim é, por interesse dos proprietários de balsas que abastecem as cidades deste estado com produtos vindos de outras capitais.Ganham muito.
Da minha porta vejo, enquanto escrevo estas palavras, e contemplo o horizonte onde o sol se põe, logo ali, no oceano pacífico, de frente à mim. Estou no Brasil bem de frente ao oceano que não banha o Brasil. Escrevo olhando o Peru, jogando barquinhos de papel no rio Juruá para que cheguem em Manaus e alguém, quiçá, entenda minha escrita.
O Acre é um território esquisito.
E eu também.
Amém.






SENSO-COMUM

Nossa vida no Acre. Caos. Absoluto caos. Não há leis de transito. Não há lei qualquer. Uma turba de gente mecanizada com automóveis, bicicletas, motos, urubus. Os urubus ocupam o centro, já os seres moventes emissores de gases do efeito estufa estão em toda a parte. Nas ruas há três mãos. A que vem, aquela que vai e a sei-lá-entende.Por sinal, a massa condutora prefere a sei-lá-entende.Uma maravilha.
Minha mulher é de QI mediano assim como eu, bem mediano, por isto nos casamos e nos toleramos; no entanto, ela, sem estudar, acertou quase a totalidade das questões teóricas sobre direção segura para renovar a carteira de motorista. Usou apenas o bom-senso e pimba. Foi aprovada com louvor! A maioria restante fez este exame com cursinho preparatório e reprovou. Portanto concluo uma trágica evidência: os novos pretendentes à motorista não têm bom-senso. Feito isto, somado à rua de três vias e a falta de respeito a qualquer lei de trânsito, temos o caos, absoluto caos. Selvageria.
O mais interessante é que você ao longo do tempo vai sendo vencido e começa a se tornar um deles, sem bom-senso .Mas o bem-bom é que você evolui e começa a não esquentar sua cabeça com estas coisas e passa a entrar nas estatísticas, senão, de outra maneira, se transformaria como este texto e ficaria todo em três vias.
Uma que vem , outra que vai e finaliza no sei-lá-entende.
Relaxa baby ,relaxa.
(Sai da frente, caralho!)




TARDE

Nossa vida no acre.
Só o Acre coube na medida que o meu pé delicado tem. Calcei. Agora quero usar até que o couro esgarce e fique poído. Por alguns anos, pelo menos. Foi difícil achar algo assim.Do que falo? Ora, pois é simples. Depois que lutei nas guerras do norte e sobrevivi nas trincheiras sinto que é hora de um pouco de comunismo. Não. Não o modelo ou seita daqueles tarados de Cuba, ou da China, ou do Lênin, ou do Chaves ,ou do Morales, ou do caralho-a-quatro, como o PT. Não, nada disto. Comunismo, derivado da palavra comum. Bem comum mesmo. Paraguaio, bagaceira, latino. Diluído na imensidão.
Hoje recebi a notícia que a nossa maior luta declarada como derrota de outrora, agora vingou, como a mágica redentora de um dia-após-o-outro. Nossos inimigos de antes se envenenaram e morreram, sozinhos, por conta e risco.Ruíram. Desta forma um dos reis desta nação revogou seu veredicto e ,exausto, pediu que nossas tropas retomem os postos.
Saudei meus colegas de luta.Um abraço à todos. Parabéns. Mas não quero mais.
Parei de acreditar. Agora eu quero roubar, sonegar e mandar meus filhos para a França.
Quero ficar no Acre uns tempos, esquecendo tudo. Aqui, bem pertinho do Peru, virando bolor. Será que eu vou morrer de dor?
Boa sorte irmãos. Sigam, bem comuns. Atentos.
Já é tarde para mim.
Beijos.



ENIGMA


A nossa vida no Acre.
Evolua, por favor, evolua. Se não evoluíres, serás extinto como os dinossauros. Grande ditado. Siga em frente, não pare. Assim formamos as ciências e ofícios e a ladainha da sociedade inteira, no ocidente. E vai adiante o santo, dando um premio àqueles que seguem na frente a romaria dos homens evoluídos com o candeeiro e o cetro. Pois bem. Sacou, né?
Eu não evoluí.Me fodi, porra! Fiquei pra traz com a cachorrada toda, aos chutes e latidos.
Como assim? Vamos lá...te explico, calma.
Sou um dejeto da cantilena médica de um país de terceiro mundo. Não tenho mestrado, nem doutorado ,muito menos pós-doutorado, é óbvio, nem especialidade, nem faço tratamentos inovadores, nem conheço quem faça, mas fazem, e eu não faço, nem uso terno, nem uso gravata, nem tenho cabelo penteado, muito menos sapato fino, nem sou distante, nem me aparto, nem sou desejado e nem me querem muito.
Viu só? Fodidaço, doutor! Um merdão.
Mas vou te dizer o que sou. Sou um mestre-especialista em miséria.
Poucos são, muito poucos são. Aliás, somos a nata que a Sorbonne nem sonhou ter.
Ontem recebi um paciente que remou quatro dias para chegar até o atendimento que eu prestei. E ele estava com a perna podre, benzida por uma serpente sorrateira, mais honesta que todos nós somos. Mas ele remou. E perdeu o pé. E eu não fui capaz de fazer mágica. Perdeu ele , perdi eu. Ganhou a nação que não sabe nada disto e segue a ladainha do candeeiro e o cetro lá de cima. Mas e o enigma do título? Qual enigma é este?
É o enigma do que direi para os meus filhos.
O enigma do que realmente vale a pena.
O enigma de chegarmos aos oitenta anos.
Pense. Pense doutor, pense.
(Vá à merda!)





CELULITE

Nossa vida no Acre.
Veja só. Uma pequena porção de tecido vivo, redondo, se encontra com outra célula redonda, e puuf...viram uma unidade maior, redonda. Depois mais outra redondinha, com outra esferóide e mais outras tantas bolotinhas minúsculas, e pim...uma bolotona!
Assim é o meu tecido celular sub-cutaneo, fazendo a celulite.
Com tanta cerveja entorpecente, bandida. Celulite pura e legítima.O que me deixa puto é que escrevem tanto livro de auto-ajuda e Paulos Coelhos, que ninguém dedica tempo maior à seqüência de efeitos das bolotinhas como eu fiz.
As mulheres iam amar... ou não.
Aqui no acre, dá.
Aqui estou sendo fagocitado .
Estou sendo esquecido
Estou virando jibóia.
Dá licença?
(Beijos)



ESCRITOR


Nossa vida no Acre.
Por seis meses no ano, por aqui, chove pencas de água do céu, à ponto de tudo virar um inferno. As estradas fecham e apenas se entra e sai com barco ou avião. Pense agora um moranguinho ou uma alface fazendo isto. O preço que isto tem. Vindo tudo de avião, senão, de outra forma, estes vegetais chegariam mumificados. Sim ,um morango vindo sentado na janela...ou corredor, comendo barrinha de cereal. Pague por isto.Pense. Nesta época do ano um repolho custa mais que um kilo de filé mignon, e não estou inventando, não.
Os mercados vendem produtos que já venceram seu prazo de validade há tempos, tudo bolorado. Olhe bem a data no fundo do pote ou na tampa.
Mas a água do céu continua escorrendo divina e prolífica, aos borbotões. E a chuva segue inclemente sem parar fazendo o rio Juruá subir muito acima de seu normal. E já fazem seis meses que não para de chover e o bolor vai subindo pelas paredes, cobrindo as massas, as bolachas, a seção de produtos de limpeza, vai pegando os ratos que tentam fugir, as borboletas amarelas que já não voam mais e no fundo do corredor da padaria inundada vejo chegando ele, com sua cabeça branca, acima do peso, já velho mas inconfundível. Garcia Marques sorrindo. Estende a mão e me diz: bom dia e aprecie a cena! E segue adiante abanando para as pessoas, todas elas sem saber quem é ele, com água pelas canelas. Então percebo o sinal. Também eu era inconsciente.Estou em Macondo. Vivo no absurdo.
Estou mergulhando em cem anos de solidão.
(preciso me cuidar)





NOUVEAU

Nossa vida no Acre.
Ontem ,para sacudir um pouco o status quo, postulei um outro sentido para se estar aqui.
Surge no Brasil uma forma nova de se ganhar a vida. A vida de médicos itinerantes. Sim. Pegue a velha fórmula de nossos pais estabelecendo um lugar para criar raízes, firmar o nome, ganhar clientela e jogue fora. Não há mais. Foi-se o tempo de cinema com Mazzaropi, Johny Weissmuller, vila sézamo, Sonia Braga pelada, calça de brim-coringa e breck-mirabel. Foi-se, meu filho. Isto aqui é século 21, sacou? Wake up!
Pois bem, somos, inconscientemente, a nova raíz do futuro.O que vem por aí.À galope.
Trabalha-se hoje aqui, gastasse o dinheiro acolá e para cá vem os de outras bandas e os destas bandas vão achar um nicho temporário mais adiante. Não se desespere. Há muitos lugares para ir. Basta querer. Somos um batalhão desajustado. Especialistas em horrores. Fazemos o que poucos sabem fazer. Miséria, meu querido. Somos doutores de misérias.
E o Brasil é generoso em prover.
Te espero.
Um beijo.
(chore, não)



FOLLIE-AUX-DEUX

Nossa vida no Acre.
O sol do meio dia é inclemente. Às quatro da tarde, também.O lençol quente da atmosfera que flutua sobre as ruas não ascende ao céu pois sobre ele há mais calor e por sobre, mais calor ainda.O verão acreano se extende por seis meses e ao contrario dos meses chuvosos, não permite uma gota sequer que venha do céu. Os rios desabam em suas margens e a frondosa floresta verde agoniza seu viço. Dizem que antes não era assim. Agora,porém ,tornou-se goiano ou mineiro.Mas algo me chama a atenção, destoando disto tudo.
Uma vaca solitária, amarrada, foi largada ao lado do passeio público para que depois alguém a busque, se muito, ou talvez porque ali tem algum pasto na margem da rodovia.
O animal agoniza no inferno do sol perpendicular sobre sua sombra. Quer beber água, quer sair, quer mais espaço, não quer estar ali. Com as patas extendidas, em riste, puxa contra a tensão da corda que a segura e fixa no lugar. Luta contra. Quer sombra. Não tem.E puxa e puxa e puxa a corda. Sofre o animal. Ninguém se importa. Nesta batalha com o cizal se desvia para o meio da rua. Os carros são insanos. Os motoristas são insanos. Os urubus aguardam. Mais outro carro desvia. Então, me identifico. Eu sou esta vaca. Eu sou louco. Louco por espaço. Puxo a soga que me incomoda, tensiono o fio. Quero água. Não tem. Quero sair. Não posso. Sou louco. Minha baba escorre pegajosa, o chão está oscilando, as imagens têm um brilho de espelho rente ao chão. Minhas narinas se dilatam, batem, ofegam.Os cascos quebram contra a pedra. Sangro, e muito sangro. Giro a cabeça para as aspas se livrarem da linha que aprisiona.Uma vaca. Eu sou a vaca-louca. Sou agônico. Sou profano. Outro carro corta o asfalto, tirando um fininho. Estou nem aí. Minha luta é com a corda. Fodam-se os carros. Que incomodo, que calor, que horror, meu Deus. Os urubus estão me olhando.Os urubus.Os urubus estão me olhando É o fim, é o fim.
Eu sou a va...
(dedicado a Reinaldo Moraes, pela cópia).




D.M.T.

Nossa vida no Acre.
Como eu cheguei primeiro para fazer o terreno e então os meus virem depois, fiquei cinco meses com uma vida de solteiro. Desta forma as horas pesam muito e é preciso preencher o tempo e a solidão. Voltei a ter uma certa vida social mais ativa, misturada, menos sociopata e agorafóbico como eu costumo ser.
Assim estávamos num domingo à tarde, juntos, eu , Gabiru e a pintora quando Elvis chegou. Foi logo mostrando o ouro que trouxera.Duzentos mililitros do chá poderoso da seita dos amalucados. Sim, apenas duzentos mililitros. Porém, o suficiente.
Elvis era mais experiente no assunto e nos passou os primeiros passos sobre o que sucederia. Primeiro uma dormência, depois algum tremor e por fim sentiríamos que as cores e os sons tornariam-se mais evidentes. Que deixássemos isto acontecer, sem medo. Talvez alguma imagem ruim ou animais ameaçadores pudessem aparecer e ,caso assim pintasse, que abrisse os olhos e buscasse a razão lembrando que tudo seria apenas uma alucinação. Mas no final de quatro horas tudo seria apenas um sonho ou uma experiência engrandecedora, pois coisas boas, espirituais, sei lá, entende, poderiam valer o esforço, afinal é um chá religioso de uma seita que mete até o Jesus Cristo no meio. Sim, pasme, mas é verdade, tem sede no Japão, no Peru, na Etiópia .E é séria, dizem também.Eu duvido, é só desculpa.Há doido para tudo, eu inclusive.
Um pouco em cada copo e cada um bebeu o seu . Gosto estranho, pavoroso. Parecia dipirona. Meia hora se passou e apareceu o tremor e as luzes e os sons começaram a se misturar e foi que então tudo começou. Um caminho sem volta.Acelera aí...pense!

“”Os olhos se fecharam e as luzes invadiram minha imaginação, eu estando só e banhado num universo de cores brilhantes, flutuando no espaço, numa forma de caleidoscópio, no qual os vultos das sombras passaram a ter luz e eu era luz também mas de repente percebo que nada disto era alegria ,era apenas a física que estimulou meus bastonetes e cones, fundo na retina, que meu córtex cerebral guardou como memória ao longo das horas, dos dias, dos anos, cores da minha infância, cores vivas, cores mortas.Não há geometria, tudo é curvo, nada é mágico. É apenas o meu ser pensando, coletando, acumulando, inventando, refazendo o sentido das coisas, querendo Deus, querendo sexo, comida, rock`n`roll, querendo o Diabo, e apenas percebo então que minha solidão é a solidão de todos os homens e na minha vida os outros seres que sobraram estão aqui e são pobres, miseráveis, sem sucesso, sem ar condicionado. Sinto os meus pés na lama. Não verei outra vez Paris, nem o Cairo, nem sentirei os cheiros de hotéis ricos e finos. Dormirei para sempre com tudo que o mundo rejeita, e não quer. A dor, os desdentados, as tetas caídas, as ruas esburacadas,os urubus, o lixo, o Brasil que ninguém admite, Brasil que todos negam, e nem sabem o quanto existe. É Brasil, caralho! Todo iluminado, que nem eu, com velas, lamparinas, queimadas, Itaipu, tiros. As palafitas, as malárias, as feridas,os esquecidos, os violentos, os descrentes, as cachaças e gira ,e gira, e gira, num grande liquidificador que tudo mói e nos mistura todos num suco deselegante que deságua neste rio imundo e que, agora se transforma numa grande onda arrancando meus últimos suspiros. Que pega de banda, de lado. E que me afoga. E que me afunda no horror. E que agonizo. E... ponto!””

Passaram-se quatro horas.
Silêncio.
Tudo acabou, sem ter uma dor de cabeça ou ressaca mínima, sequer.
Di-metil-triptofano, Daime, Ayuhasca, Caapy, tanto faz o nome.Vão todos à merda.
Não me interessa, nem é isto o que eu procuro, de outra forma teria a minha religião.
Eu apenas vivi isto. Foi assim, foi bem assim.
Só me desespero um pouco em saber que nem tudo era só alucinação.
Uma dose só, basta.
(te amo, Brasil...apenas tu sobrou para mim!)


HARD

Nossa vida no Acre.
Ë tido como verídico que o termo “vira-latas”surgiu numa viagem de Fernão Garanhão ao Grão-Pará em idos do século 17. A grande travessia da nave portuguesa custou inúmeras visitas à lata de dejetos. Dejetos-reais, dejetos-marinheiros e dejetos-escravos. Reais nem tanto, mas dizem. Pois bem, Fernão mirou seu fio-fó luso no centro da lata e por ali deixou inúmeros fernandos que acabaram jogados ao longo do atlântico. Seriam mais, porém a preguiça se juntou com a burrice e a lata dos reais ficou por algum tempo à deriva no meio do convés. Tento conceber onde andava a lata dos marinheiros, já a lata dos escravos é inconcebível. Pois bem. Fernando também cagou no mar.
O colon é tido cientificamente como o nosso órgão sociável, pois lhe digo que através dele podemos reter dejetos sólidos , líquidos ou gasosos. Um depósito, por assim dizer (vide tratado de colo-proctologia de Hélio Fragosa, lá de Minas, edição de 1998).
Às vezes Fernando nem imaginava onde andava sua lata real mas a constrição voluntária e involuntaria, fez seu colon reter por inúmeras ocasiões os torpedos lusos, até que algum marinheiro ou escravo soubesse por onde se perdia a lata crostosa do navegador.
Sentiu o clima, né? Fernando e sua lata.
Na real, Fernando era um cagão.
Mas havia na maravilhosa nave um cino-vivente, um cão, um cusco para os menos refinados, que cheirava tudo quanto era coisa horrível. Cheirava as meias, as cuecas, os carpins, os queijos, as calcinhas (sim, Fernando tinha uma escrava), as raízes vencidas, os arenques...e a lata da cagança, tenebrosa, por sinal.
Não preciso dizer o que aconteceu, apenas resumo que o cãozinho cheirador ficou flutuando entre a Costa do Marfim e Salvador, depois que os resíduos lusos escorreram do alicerce superior até o mais inferior patamar da grande embarcação que ajudou a povoar o digníssimo e régio Brasil.
Assim o termo e espécime “”vira-latas”” é amaldiçoado das classes mais altas até às classes X, Y e Z do estrato social brasileiro.
Mas pasmem. O cino-cão, vivo, jogado ao mar, agüentou tempestades, comeu insetos-marítimos, bebeu água da chuva, dormiu nas ondas, baixou seu metabolismo, venceu tubarões e chegou no Brasil e encontrou inúmeras cadelinhas, vira-latinhas como ele.
Dizem que agüenta tudo e não duvido.
Viu só. Agora me defini, sem querer.
Sou vira-latas também.
Cheiro tudo por aí. Adoro calcinhas. Mas vivo e sobrevivo até nas piores tempestades.
(pequena crônica dedicada ao Filé, meu vira-latas de estimação)



Oscar Soares, é Médico Cirurgião Especialista na vida humana



Um comentário:

Unknown disse...

Gil, esta vida é cheia de surpresas mesmo. Estou fazendo um curso de especialização online e um cara que está na terra da Bela adormecida me disse que o Oscar tinha ido para o Acre( pois perguntei dele), o Sandro tinha casado com a Ludivinia e se mudado para França(ainda não desisti de encontra-lo) e o Washington , não ele não casou com uma índia, que pena! Ele saiu de Saint Gabriel este ano se mudando só Deus sabe para onde. Eita vidinha divertida e cheia de surpresas!!!!