quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O tempo não para

“Tem pequenas coisas que nos fazem falta, assim como, tem grandes coisas que não valem à pena”

Ele estava lá, em cima do criado mudo, impressionante esta palavra, não sei nem se ela existe mais, agora deve se chamar “dumb servant” e custar um pouco mais caro. Será que era uma forma de retaliação aos criados dos antigos casarões que se arriscavam a tecer um comentário sobre o tempo? Que falavam do gosto da comida? Ou que respondiam de canto de boca aos chiliques das esposas dos senhores de engenho? Ou ele exercia a mesma função do criado, porém mais taciturna. Bem não importa, só sei que ele estava lá, tinha uma cicatriz de uma queda bem no meio da testa, do tempo que servia a uma prima minha lá na capital, coincidentemente era mudo também, a não ser quando a empregada com todo o seu carinho tifonês (Deus grego) mexia em suas articulações, aí ele emitia um sinal típico de TV fora do ar, mostrando o seu desconforto e descontentamento.

Era cinza maduro, retangular, emitia uma singela luz amarela e tinha uma inteligência fenomenal, não perdia a hora, nem os segundos, que organização. Eu, um semi-organizado convicto me baseava na sua luz, para não me perder no tempo, no sono, no esquecimento, no compromisso, na vontade de chutá-lo, mentira, nunca quis chutá-lo sempre o tratei bem ao contrario de quem fez aquela cicatriz na sua testa, um covarde, um desleixado, um chutador barato. Ele era a minha segurança, confiança, me dava boa noite e me cobria antes de dormir e eu em contrapartida caprichava nas prosopopéias. Era o primeiro ser que eu olhava ao amanhecer. Às vezes, em noite de apagão, ele acordava piscando, emitindo um sinal de alerta, pedindo socorro, ajuda e eu em retribuição, dava e voltava tudo ao normal, ufa!

Um dia o seu maior inimigo. Aquele ser invisível, que anda por dentro dos fios e se propaga por meio da reordenação dos elétrons, sofreu um fenômeno físico parecido com um curto (o eletricista não conseguiu se fazer entender), uma baixeza, um golpe rasteiro, uma sacanagem mesmo a qualquer ser inanimado do bem, no meu amigo do bem e ele parou, nunca mais propagou sua luz, apodreceu, cheirou a queimado. Foi-se o meu retangular companheiro.

Fiquei uma semana inquieto, ausente, com um vazio dentro de mim. Ele foi para a UTI ficou lá muito tempo, não me davam notícias, perguntava a minha esposa a todo o momento e ela só remediava o meu esdrúxulo sentimento, como se já soubesse o fim. E foi o fim. Não voltou mais, nem para doação de seus parafusos para um outro ser, nem para um despedida muda, silenciosa, nem para um segundo a mais.

Esta semana chegou um parente seu, do mesmo local, da capital. Prateado, com aerodinâmica moderna, embalado em uma bonita caixa. Coloquei-o em cima do servo criado, que durante este período, permaneceu como sempre sem emitir uma palavra, de luto. Ao conectá-lo aos inconfiáveis orifícios do ser invisível sorrateiro, meu espanto maior, foi ver a sua vitalidade, típica da jovialidade mecânica, do início. De madrugada ao olhar para ele, enviou-me uma intensa luz vermelha rubro de três algarismos, que ficou gravada em minhas retinas e que até agora ao fechar os olhos ainda faz-me lembrar dos números.

Ainda estamos nos conhecendo, nos acostumando. Tenho certeza que faremos uma boa amizade. Afinal de contas dependemos um do outro.

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
Eu não vivo mais sem um rádio relógio
Eu não sou louco!


Gilberto Granato

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