segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Digital

Machado de Assis já dizia que há um meio certeiro de se começar uma crônica por sua trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! E foi assim que fui fazer um recadastramento biométrico. Isto mesmo meu leitor. O nome faz lembrar de prefixos e dos quase extintos alfaiates e suas fitas métricas precisas, mas na verdade o negócio era para a implantação de um novo sistema eleitoral de identificação, feito por meio de digitais e da foto do corcunda aqui. Tal medida visa exterminar os vertebrados fantasmas e as ações do político mediano brasileiro (que está longe da extinção) e que usa o poder biofraudulético nas regras eleitorais, fazendo qualquer alfaiate rasgar a seda por aí.

Prontamente nos deslocamos (eu e minha dor nas costas) ao local combinado, sob o risco de cancelarem meu título e de ficarmos sem votar nas próximas eleições (resquícios da ditadura). Eu sou de direita e minha coluna de esquerda, porisso discordamos quando o assunto é qualquer um que exija movimentação física. Burocracia nas mãos e chinelo nos dedos. Mandaram-nos pra uma sala lá no fundo do cartório eleitoral, que de tão encovada e estratégica, serviria tranquilamente para abrigo em caso de algum ataque aéreo bioquímico. Tive que provar que eu era eu, o que sempre é difícil no Brazilzão, acho que a moçoila ficou na dúvida se aquele era realmente eu, mas pela pintura clara dos cabelos e pelas unhas bem feitas, devia ter um outro plano mais biofértil para mais tarde, dispensando assim, os tapas na cara e os eletrochoques, fazendo questão de agilizar o meu processo de exílio (ainda bem que a dor nas costas “dedo dura convicta” não abriu a boca). Fomos levados para uma outra biosfera, onde uma senhora com cara de ministra da casa civil fitou-me e disse, com a silhueta incisiva: Toma celestino! Meu Deus do céu! Pensei rapidamente, aquilo deveria ser um plano de troca de identidade, alteraram minhas digitais, minha imagem, meus dados, meu bioma! A fim de me tirarem de campo. Seria a extinção dos alfaiates? Para não atrapalharem com um voto bem medido nas próximas eleições? Agora eu só tinha a minha dor nas costas, como única prova de que eu era eu. O que fazer? E logo ela que se dizia comunista, camarada, confrade, na hora da tortura, ou melhor, aperto, abandonou o companheiro aqui, ficou muda, quietinha, de bico fechado. Mas ainda bem, que tudo não passou de um susto, o Celestino logo apareceu vindo de uma outra sala, um pouco pálido apesar da cor negra é bem verdade, mas apareceu. E assim fiquei mais calmo, depois de tanta bioadiversidade.

Com as medidas recadastradas, peguei meu título novinho, que para minha decepção, não diferia em nada do velho. E “poquei fora”, como diz o bom capixaba. Mas com uma nova biodescoberta. Que agora existe uma nova maneira infalível de se finalizar uma crônica. É só dizer: Que dor! Que desenfreada dor nas costas!



Gilberto Granato

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Escapula

- Me vê uma caninha!
- Toma. É sua última.
- Pera aí seu Zé, não vem com esse negócio de lei seca não!
- Não é o seu Zé. Eu sou São Pedro.
- Ué! Eu não sabia que o seu Zé tinha vendido o boteco?
- Ele não vendeu. Eu só vim para te levar.
- Levar pra onde?
- Pro céu.
- Mas por quê?
- Pois você já exagerou demais na “mardita”, opa, quer dizer na água-que-passarinho-não-bebe. Veja, todos lhe chamam de pinguço, você fará uma desintoxicação.
- Mas no céu?
- É o único jeito. Você já tentou todos métodos humanos e não adiantou nada.
- Posso ao menos levar um pedaço deste chouriço aqui comigo?
- Não. Lá não se come.
- E se eu sentir sede?
- Você aprende a se controlar.
- Não se bebe nada?
- Apenas água da chuva.
- E os jogos do timão, dá pra ver de lá?
- Não. Não se tem meios de comunicação com a terra.
- Nem novela?
- Muito menos.
- E pra dormir?
- É nas nuvens.
- E se não tiver nuvens?
- Não se dorme, fica-se orando.
- Em pé?
- Sim, o dia todo.
- Não dá mau cheiro não?
- Não se sente aroma nenhum.
- E São Pedro, com todo respeito, um namoricozinho será que pode?
- Nem pensar. Impossível. É proibido.
- Santo Deus!
- Pois é, foi ele que me enviou até aqui, já está na hora.
- E se eu não for o coisa-ruim me leva?
- Ele não te quer por lá. Está superlotado.
- Jesus!
- Pois é, e ele também está te esperando já um pouco desgostoso com a demora.
- E vamos de quê?
- Voando.
- E demora?
- Uns cinco dias.
- Mas porque isto tudo?
- Pois você ainda não tem asas, tenho que te carregar.

(o homem saiu correndo, nunca mais bebeu).

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Rosbife

Enaldo era um grande peladeiro. Não na técnica, nem na altura. Grande, pois não lhe faltava vontade de ser o primeiro a chegar ao campo no fim de semana pela manhã, para aguardar o apito do robusto e sempre atrasado juiz. Pois para ele, peladeiro que se prezava nunca faltava a uma pelada, se não fosse por motivos muito fortes envolvendo parentes de primeiríssimo grau, ou patologias daquelas que precisam ir ao médico. Até em dias de chuva ele ia, só para ter certeza e ver com os próprios olhos, que o campo encharcado não possibilitaria uma partida. Nas sextas à noite, sempre que era convidado para algum evento que poderia se estender por demais, não se omitia em ser sincero e dizer: “não posso, amanhã tenho pelada”. A mulher já estava acostumada, e pensava que era melhor um marido peladeiro convicto, do que ficar como algumas amigas, que tinham seus esposos vivendo de bar em bar independente da chuva e da patologia.

Sempre que chegava, primeiro lia atentamente o caderno de esportes do jornal, depois fazia um breve alongamento, colocava a chuteira, dava umas duas voltas em ritmo lento em torno do campo, para imprimir ritmo ao coração e prontamente já se voluntariava para dividir os times. Mas neste dia algo diferente ocorreu. Ao dar a segunda volta no campo, sentiu uma forte dor na virilha e caiu no chão. Todos ao redor estranhando o ocorrido, correram até ele. E lá estava Enaldo caído, com os olhos fechados de dor, foi socorrido e levado até uma cadeira à sombra. Foi ai que começaram os palpites, pois peladeiro que é peladeiro, sempre tem um palpite infalível para as lesões do futebol:

- Coloca gelo!
- Gelo não, água quente e logo!
- Estica a perna e contrai!
- Pera aí, que eu tenho uma pomada tira e queda.
- Não precisa de química não, usa arnica do mato é infalível!

E sempre tem aqueles céticos: “não foi nada não, amanhã você já está melhor!”. Só que Enaldo sabia que não estaria, afinal de contas, nunca tinha sentido uma dor como aquela. Até que um senhor de cabelos brancos que observa aquilo tudo de longe, intrometeu-se e disse: “coloca um rosbife!”. Alguns acharam graça, mas Enaldo franziu as testa encucado e perguntou:

- Como assim?
- compra um pedaço grosso de rosbife e deixa agir no local, por no mínimo vinte e quatro horas.
- A carne pura?
- Sim.
- Mas de que carne?
- De lagarto, não serve contra-filet.
- O senhor já fez isto alguma vez?
- Eu faço isto há quarenta anos.

Enaldo com muita dificuldade dirigiu até o açougue, e do carro mesmo pediu dois pedaços por garantia, pois sua vontade de se recuperar logo para o próximo fim de semana, era maior que qualquer coisa. Chegou em casa, tomou um banho rápido e prontamente colocou aquele generoso e suculento pedaço de lagarto na virilha e foi para o sofá, onde lá ficou sem se mexer até o anoitecer. A esposa preocupada só sabia que ele havia se machucado e fazia todas suas vontades para não gerar atrito, já que o descontentamento do marido era visível. Na hora de dormir, em vez de tomar o banho, preferiu ficar com aquele tecido muscular animal no local, com medo de atrapalhar o efeito do tratamento, foi dormir. Acordou de manhã e abriu um sorriso, como se já esperasse uma melhora súbita. Levantou-se e foi até a cozinha para ver se a dor era a mesma, encontrou a aliança da esposa em cima do outro pedaço de lagarto na pia.

(a esposa foi vista pela última vez aos prantos, gripada em um bar em dia de chuva)


Gilberto Granato.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Apagão

E o apagão repercutiu...






Apagão (ausência no suprimento de energia por um longo tempo)
A! Pagão. (a esposa decepcionada ao ver a toalha do marido molhada em cima da cama)
Ap – Agão (município do interior do Amapá)
Apa! Gão! (um indivíduo cumprimentando o outro)
Apag ão (a esposa chamando o marido pelo apelido, pedindo para apagar a luz)
Apaga o! (a esposa já estressada pela demora do marido)
A pag ão (a esposa pedindo para o marido pagar a sandália nova no seu cartão de crédito)
A paga o (insistindo novamente)
A p a g a o (professor soletrando para os alunos)
Ap ag ão (conferência no Amapá dos argentinos que moram no Sudão)
A p aga o (traduzindo “pai água poxa!”)
A p... agaô (a p*#! da claudinha agarrou o joãozinho)
A.P.A.G.A.O (Associação piumense dos apanhadores de garrafas amarelo ouro)

Apagão (em inglês black-out)
Pagão (sujeito não monoteísta)
Agão (verdura neológica pouquíssima popular)
Gão (indivíduo fanho chamando o cachorro)
ão (cachorro fanho latindo pro dono)
o (criança aprendendo a falar)


Gilberto Granato, não é poeta concretista.

(semana em que 10 estados foram atingidos e mais de sessenta milhões de pessoas, ficaram sem luz por algumas horas no Brasil. Fato que tomou conta integralmente dos telejornais, que esqueceram até de noticiar que Madonna estava por aqui).

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Coisas deleitáveis

Banho de cachoeira, fim de semana em um bom hotel, cd novo, pelada domingo de manhã, queijo derretido, jornal fim de semana, bateria de escola de samba, filme com bom roteiro, mulher de short de ginástica, filho brincando, deixar a barba crescer, açaí, São Gabriel da Cachoeira, cerveja e chop gelado, sushi, cachorro esperando o dono, beiju de mandioca fresco feito por uma índia, silêncio, rock dos bons, casa própria, árvore plantada por nós, dinheiro sobrando, charrete em via pública, ir a um lugar que ninguém te conhece, banho quente e controle remoto após um dia duro de trabalho, pizza de polvo de Noronha, menino preto bem de vida, falar “tranqüilo”, orquídea prestes a dar flor, ouvir uma bela música que já não lembrava mais, trocar de escova de dente, não ter celular, turma da mônica, fazer um sonzinho mesmo que seja ruim, estar vivo e com saúde, jogo de tênis bem disputado, pão com manteiga quentinho, sobremesa, fica a sós de vez em quando, um copo de água gelada quando se está com muita sede, ficar com os pés para o alto, vista da terceira ponte chegando em vitória, férias, cheiro de chuva, feriado, um tubo pegando jacaré na praia, passar a unha no cantinho da dobra da toalha de banho, comida da minha mãe, família, Tocantins, meus amigos, ser bem remunerado, frio, calor, ser premiado, mala pronta pra viagem, lençol aberto na hora de dormir, vitamina de abacate, qualquer tipo de Dabucuri, Brasil decidindo uma partida em qualquer esporte, passarinho cantando, artesanato, grama cortada, corinthians no pacaembu lotado, tapioca com queijo, boteco, achar dinheiro no bolso da bermuda, cozinhar com azeite, presentinho de dia dos pais, massagem nos pés, consorte de bem com a vida, sexo, ouvir histórias dos mais velhos, ler uma boa crônica, uma boa charge, fazer uma lista destas...


Gilberto Granato

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Finados

Fim de tarde de segunda
Estou na janela
O gato chega com um canário na boca
O cachorro vai averiguar
Um pequeno desentendimento acontece
Talvez o cachorro não tenha gostado
O gato se arrepende
Deixa o canário caído na grama
Não come sua carne
Vai embora
Dois outros canários aparecem
Tentam reanimá-lo com bicadas
É tudo em vão.
O enterro é debaixo do pé de pitanga.
A vida segue...


Gilberto Granato, torce para que o finado canário tenha aproveitado bem sua vida.

domingo, 1 de novembro de 2009

Coisas abomináveis

Gente que só fala em trabalho, portão eletrônico enguiçado, tempo chuvoso em dia que mais se quer o sol, telefone tocando, domingo quando começa a anoitecer, filho que caga a fralda depois do banho e depois da troca caga novamente, passarinho na gaiola, orquídea que não dá flor, meia curta, furada ou manchada, bafo, atraso, pizza com maionese, fazer fogo pra queimar o lixo, derrubar açucar, comer bagaço de laranja, mulher com perna e/ou suvaco cabeludo, Corinthians jogando como se fosse amistoso, saleiro entupido, TV fora do ar, TPM, qualquer coisa diet ou light, garçom que atende mal, banheiro sujo, cd caro, viajar de ônibus, ficar ao sol sem protetor, filme dublado, não saber nadar, velório, gente gripada, pneu furado, comida sem tempero, gente que não sabe atravessar rua, pessoa que fala muito em religião, cerveja quente ou congelada, gente que fala e gesticula uma palavra entre aspas, pão tipo isopor, Ana Carolina e Jorge Vercilo tocando juntos, qualquer tipo de monarquia, mangueira embolada, gente que não faz festa porque "não quer encher a barriga dos outros", mosca importunando na hora da comida, motorista que não dá seta, procurar algo na bolsa da consorte, escreverem seu nome erroneamente, consorte mau humorada, oferecer e recusar, sabonete com cabelo, ralo do box do chuveiro com cabelo, eletricista, marceneiro e pedreiro, jiló, enchente, estrada com buraco, buraco com estrada, animal de estimação em cima da cama, sujeito metido a falar outra língua, vizinho, qualquer presidente do senado federal e da câmara dos deputados (só vão os piores), gente falando alto, pagodinho, chupar palito de picolé seco, funk carioca, luz alta ao cruzar veículo à noite, cachorro sem rabo, lençol de dormir que fica cheio de bolinha depois que lava, pessoa que fala batendo na gente, araponga com dor de cotovelo, viajar de carro de ressaca, piso solto, fila de elevador, fumante, falar da vida alheia, flanelinha, não tocar a bola pro companheiro na pelada, torcer o joelho, exame de fezes, gente que fica tentando aparecer atrás do repórter na tv, plagiar Paulo Mendes Campos e os anos sessenta...


Gilberto Granato