quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A Fuga


São Félix do Araguaia, nordeste do Mato Grosso, próximo das divisas do Pará e separado pelo rio Araguaia, do estado de Tocantins. Para chegar lá. É necessário um bom preparo físico e rodar mais de 300 Kilometros de estradas de terra (que no mapa está asfaltado coisa dos nossos políticos), com os devidos buracos, as devidas “costelas de vaca” (aquele tipo de mini-quebra mola consecutivo e infinito), suas pontes de dois troncos de madeira, onde se passa só o motorista rezando e que é constantemente invadida e interrompida por movimentos de sem terra (MST), pois ali eu conheci a má distribuição de terra.

Você caro leitor, pode escolher a melhor época para uma visita. Não existe as estações do ano como conhecemos, apenas a época seca e a com chuvas. Durante 8 meses não chove uma gota. Poeira...poeira... você vira o “homem poeira”, acostumará a tomar banho (quando tiver água) e ver aquele caldo de “café com leite” descendo pelo ralo todos os dias. As queimadas do cerrado para a monocultura do gado e da soja, neste período são constantes, então vá se adaptando com a idéia de respirar fumaça o dia todo e não ver o outro lado do rio Araguaia (por sinal um belo curso d’agua que merecerá uma menos árida história). Ou então vá na temporada de chuvas e vá se habituando a ficar atolado nas estradas (ou ficar bloqueado por um outro atolado), a tirar a lama dos sapatos e pisar em poças de água (realmente não tenho perfil para secretário de turismo de lá).

Tivemos (Eu e Xibé) dificuldade para conseguir uma moradia na cidade de cerca 10.000 habitantes. Morei (cheguei primeiro para estudar o terreno) uma temporada na casa de Leila, Paraense e chefe do projeto que trabalhávamos. Pessoa decente, amável e hospitaleira. Naquela casa, vi pela primeira vez um “dono de casa”, isto mesmo, quem cuidava da casa era um travesti, que não era por isso, menos decente, amável e hospitaleiro. Quando achamos a muito custo (em todos os sentidos) um teto. Foi uma casa alugada ao lado do locador (isto nunca dá certo). O protagonista desta história, Seu Edigard o “homem do Araguaia”. Homem que tem as características físicas de um cidadão daquela região: pele escamosa, igual de cobra para conter a transpiração e armazenar água, gene recessivo (porção do cromossomo) para os pêlos do corpo, principalmente nariz e ouvidos, que formavam uma verdadeira touceira de cebolinha a fim de protegê-lo da poeira e da fuligem, nariz achatado do “homem de Neandertal” e brânquias atrás das orelhas (isto não consegui ver) para facilitar a respiração, timbre de voz igual do “sinhozinho malta” lembra? Protagonizado por Lima Duarte na melhor novela da Tv, Roque Santeiro e por fim ter uma cara sisuda e carrancuda típica dos lutadores boxe.

Ele tinha um grande afeto pela casa em que morávamos, assinamos contrato, pagávamos o aluguel em dia, conversávamos sobre o tempo, mas nunca fizemos um churrasco juntos. Cheguei até a trazer uma garrafa de mel do cerrado das aldeias, para curar uma tosse do velho decrépito. O que ele insistia em frisar era que ao irmos embora fosse deixado dois galões de tinta “Renner” branca (ele tinha adoração por esta marca), para pintar o local novamente. Tudo bem, sem problemas. Em uma visita ao sudeste de férias compramos a tinta e na volta entregamos com antecedência ao sujeito miserável sem saber o que se passava em sua mente retorcida e sem prever o dia em que retornaríamos. Desta vez definitivamente.

Minha cunhada Michele mais seus dois filhos João Pedro e Maria Julia (na época ele com dois anos e ela bebê), moraram uma temporada conosco, pois Michele que além de outras habilidades também é técnica de laboratório dental. Esteve lá para ajudar na confecção de dentaduras para os queridos, porém desdentados índios.

Os dias secos se passaram até que resolvemos dar o grito de liberdade e voltar para nossa terra natal, atrás de uma privada privativa. Fui avisar ao “homem das cavernas” da nossa partida, foi quando vi seus olhos abugalharem, suas sobrancelhas engrossarem e sua má fé entrar em ação: Agora ele queria tinta para as portas, fechaduras, piso... só faltou pedir um creme hidratante. Depois de argumentar ao máximo o nosso trato, fui bem educado em dizer: Nem pelo caralho!!!! (me desculpe a palavra).

Pedimos demissão, começamos a vender as coisas, a carregar o carro e o velho nos vigiava dia e noite e falava bem alto: “vocês não vão me deixar no prijuizu!” Seus filhos, sua esposa tentavam o acalmar, mas nada o tirava da vigilha, apenas sua pressão alta. Na noite antes da partida dormimos todos os cinco, na sala no chão duro e ele prevendo que partiríamos, mandou a polícia burra, corrupta e ignorante nos abordar. Chegaram grosseiros, alegando “abandono de casa” o que a polícia tem a ver com isto? Coisas de cidade sem lei. Depois de questionarmos o verdadeiro papel da polícia, um mais esperto e vendo que éramos pessoas de bem fez a retirada já conscientizado. O “velho caduco” deve não ter dormido e nem eu, que passei a noite toda vigiando a janela, para evitar uma chacina (lá todo mundo anda armado).

Acordamos cedo, demos uma despistada, as mulheres ficaram na casa e fui deixar as chaves da casa na delegacia (medida de pessoa que está correta), dei umas voltas no quarteirão, despedimos de alguns, juntamos todos, ainda tremendo, paramos para comprar uma chupeta para Maria Julia e conter seu choro e Michele disse (horas depois) ter notado o seu "Ed" passar de moto ao lado do carro para a saída da cidade, estava armado? Sem saber, instintivamente entrei por ruas laterais de terra e saí lá na frente da saída do lugarejo. O sentimento devia ser igual ao de fugir de uma avalanche. O coração batia a mil até conseguir passar a fronteira do Mato Grosso com Goiás (será que haveria uma barricada de policiais?) na hora não sabíamos mais o que era lei, real ou correto.

Só queríamos ir embora, descansar, começar outra vida e fugir das garras afiadas e sujismundas do “homem mutante”.



Gilberto Granato.

Um comentário:

Unknown disse...

Brincadeira einh, Gil!!! Você estava morando no velho oeste ou no Mato Grosso? A poeira conheço bem mas 8 meses sem chuva é loucura!
Ainda bem que conseguiu escapar do homem mutante e ainda bem que não ficou tempo suficiente nesta terra para não sofrer mutações também.