sexta-feira, 10 de abril de 2009

Uma estória de sexta-feira santa

O silêncio, o jejum e a oração são os traços marcantes da Sexta-feira Santa, dia em que os cristãos celebram a Paixão e Morte de Jesus o maior dos cronistas. Isto todos sabem, ou se lembram na véspera. Mas tenho um amigo cristão que é um seguidor nato dos bons costumes, da coerência e das boas ações nesta vida independente de raça, religião e creio-em-Deus-Padre. E lembro-me religioso leitor do dia em que salvei sua carne, opa! Desculpe-me a palavra pagã neste dia, então me lembro do dia que salvei seu bacalhau, fica ruim, mas melhor assim.

Era uma sexta santa que nem hoje. Nesta época ele era meu vizinho. Morávamos lá na cabeça do cachorro, nas margens do rio negro, pertinho da Colômbia, do ladinho de Hugo Chávez, a pequena distância das FARC, bem mofados mesmo. Eram duas casas a minha de cimento e bolor nas paredes e a dele de madeira e fungos nas tábuas, mas não tinha lobo mau para derrubá-las não, elas iam desmoronando naturalmente mesmo. Acordei cedo e fui fazer uma visita ao meu compadre para lhe convidar para comer um peixe naquele dia, pois apesar da distância manteríamos a tradição de não comer carne (não teve jeito tive que falar de novo). Entrei em sua maloca e o encontrei acordando para a vida, já estava cumprindo boa parte do recomendado para aquele dia, o silêncio da natureza, o jejum e a oração que disse que faria mais tarde. Mas passados alguns minutos, não se conteve e pegou um pão dormido, abriu a geladeira que tinha dezenas de garrafas d’água (talvez tivesse se purificando afinal de contas era um homem místico) e apanhou logo ali no cantinho umas duas fatias de queijo com bolor e mais ao fundo uma de presunto de mesmo aspecto esverdeado. É bom lembrar que este amigo é desligado, tem problemas de memória e esquecimento crônicos, que já o fizeram passar por situações inusitadas em sua trajetória, em breve andará com um colar com seu nome completo pendurado no pescoço só por precaução. E por um desses blecautes cerebrais (que não teem hora para acontecer) ameaçou colocar a fatia de presunto dentro do trigo, ou melhor, pão. Mas graças a deus eu estava lá, com minha boa memória, com minha saúde mental intacta. O quê que ia falar mesmo? Ah tá lembrei! Sobre impedir que aquele homem de bem se impurificasse. Então o alertei e imediatamente ele devolveu o maldito alimento obtido a partir das patas traseiras do porco ou suíno, para a geladeira, Ufa! Que bom, o contentamento por ainda estar seguindo as tradições era nato em seu rosto.

Depois de alguns papos furados, retornei a minha casa para ver como andava o peixe e as infiltrações, foi quando me lembrei de algo que não tinha dito, e para não ficar o dito pelo não dito, já que não tinha dito, retornei a sua casa para ficar tudo dito. Ao adentrar ele já estava lá, mastigando seu pão, meio de costas para mim é bem verdade, mas um homem de bem, precisa de energias para tal fim e com muita dificuldade consegui ver por entre as fatias de queijo e o branco marrom do substrato de trigo, uma fatia daquele material de cor avermelhada trago pelos fenícios e que agora estava ali contaminando a sua integridade de início de fim de semana. Resolvi não dizer nada, para não molestar aquele pobre homem enganado por sua consciência, pela megera falta de memória que insiste em atormentá-lo e que precisa de segundos para acometê-lo novamente.

Tenho certeza que foi sem querer, é o tal do desmemoriamento, este homem é um santo gente, só faltam as asas, o problema é a sua reminiscência. Neste dia, feriado, de sol e de provável barriga vazia, deve estar vasculhando sua geladeira atrás de algo como é de costume, acho que vou procurar seu telefone, vou alertá-lo, uma ligadinha santa não custa nada.

Afinal ele é um santo, é sim.

O seu único problema é o presunto.

não, não já ia me esquecendo..

È a memória poxa, já disse!



Gilberto Granato

Um comentário:

Unknown disse...

Homem Santo de Castelo,
Ao que me lembro na minha memória desmemoriada, a geladeira só tinha água, queijo e presunto mofado. Nestas condições precárias de alimentação, Deus perdoa a ingestão indevida. O pecado está no coração e não nas ações ( nesta caso ).
Nesta sexta feira santa, segui o protocolo, já que comi na casa da minha mãe, católica, não rejeitaria nunca uma deliciosa torta capixaba em troca de um pão com presunto e queijo mofado.
Que condições eram aquelas em que a gente vivia, einh!???/
Muito engraçado lembrar daqueles tempos..
Abraços.....